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Para ler Dostoiévski

  • celsonhupfer
  • 5 de jun. de 2024
  • 19 min de leitura

Sou um apaixonado pela literatura de Dostoiévski. Compartilho a opinião do criador da Psicanálise, Sigmund Freud, de que Dostoiévski é o maior escritor de todos os tempos. Apesar de ser uma opinião pessoal, os leitores poderão conferir que qualquer seleção dos melhores romances da história da literatura conta invariavelmente com um ou mais de seus livros. Quem nunca ouviu falar ou leu Crime e Castigo, Os Irmãos Karamázov, Os Demônios, O Idiota, para citar apenas os mais famosos.

Meu propósito hoje é contribuir para que os leitores iniciantes ou recém iniciados na literatura desse russo do século XIX caminhem por uma jornada menos complexa. Sim, porque Dostoiévski não é um autor fácil. Seus personagens são de extrema complexidade psicológica, seus enredos às vezes beiram o caótico e ele tem muito pouco interesse nas questões do tempo e do espaço. Não espere descrições de cenários, nem de contextos. Muitas vezes parece que tudo acontece ao mesmo tempo e agora. A preocupação dele é discutir os dramas psicológicos de seus personagens, com todas as suas contradições e radicalidades, e as dificuldades que estas personagens impõem às relações e aos problemas de seu tempo. Daí brota uma profusão de personagens arquetípicas, onde beberam inúmeros pensadores e correntes de pensamento depois dele, como Nietzsche, Freud, Camus, o Existencialismo, o Surrealismo, entre outros. Além dos personagens, o pensamento de todo o século XX também se aproveitou de algumas das mais profundas questões trazidas à tona por Dostoiévski, como as dos limites da maldade humana, do livre arbítrio, do ressentimento, dos radicalismos utilitário e socialista etc. Por isso, ler Dostoiévski é um mergulho na alma humana e nas suas condições de existência num mundo que dá os primeiros passos no seu caminho para a modernidade. 

A primeira vez que me propus a ler Dostoiévski eu tinha uns 24 ou 25 anos. Eu havia concluído o programa de Trainee do Banco Noroeste Chemical, que depois virou Norchem. Trabalhava como analista econômico e fazia estudos setoriais para a área de crédito. Estimulado por uma colega também economista, comprei as Obras Completas do autor, uma edição em quatro volumes, da Editora Nova Aguilar, cuja primeira edição havia sido publicada em 1963. Os textos foram publicados em papel Biblia, aqueles de folhas bem fininhas e letras miúdas. Lembro que aproveitava minhas idas e vindas no ônibus elétrico Margarida Maria, que me levava da Vila Mariana para o Centro de São Paulo e vice-versa. Era sempre uma situação curiosa, porque eu usava terno e gravata, comuns aos bancários da época, e lia aqueles livros que pareciam efetivamente uma Bíblia. Frequentemente alguém me abordava e me perguntava se eu era pastor de alguma igreja evangélica. Dava sempre um certo trabalho dizer que eu estava lendo literatura e, principalmente, que gostaria de continuar no meu exercício solitário. Porque ler é algo que se faz preponderantemente sozinho. Mas também era divertido, talvez porque me lembrasse de meu passado de sete anos como seminarista jesuíta.

Comecei direto pelos seus livros da maturidade, Crime e Castigo, Os Irmãos Karamázov, O Jogador, O Eterno Marido, O Idiota e assim por diante. Tinha muita dificuldade em compreender os textos, especialmente pela complexidade dos personagens. O que me fascinava era o quão profundo o autor mergulhava na alma humana. Sempre fui atraído pelo sombrio, por aquilo que estava escondido e que se recusava em se mostrar. Eu queria visitar aquilo que estava por trás do que aparecia.

Mais recentemente, em plena pandemia do Corona Virus, recebi de um amigo uma entrevista em vídeo do youtuber Flávio Ricardo Vassoler, que me apresentou a obra magistral do biógrafo e crítico literário de Dostoiévski, Joseph Frank, em cinco volumes e algumas milhares de páginas. Decidi que iria ler novamente a obra completa de Dostoiévski, agora acompanhado das análises de seu biógrafo e crítico. Logo percebi que deveria ler também outros autores russos contemporâneos de Dostoiévski, como Gógol, Turguêniev, Tolstói, Tchernichévski, Herzen, além de alguns comentadores. Foi uma experiência maravilhosa, porque finalmente comecei a ter um acesso de fato mais profundo ao que Dostoiévski queria nos transmitir. A jornada durou uns quatro anos ou mais. Gostaria de compartilhar o aprendizado dessa experiência, porque acredito que pode ajudar quem deseja se enveredar pelo universo de Dostoiévski. É claro que não estou sugerindo ao leitor seguir a minha trajetória. Simplesmente acredito que, com o entendimento do que se passava com o autor e com o contexto sócio cultural de sua época, fica mais fácil compreender o que ele queria deixar para a posteridade.

Dividirei o texto em quatro partes. Acho que dá um pouco de estrutura para quem quiser acompanhar.

1)      Um pouco da biografia de Dostoiévski

2)      O contexto sócio cultural em que Dostoiévski escreveu

3)      Uma divisão cronológica da literatura de Dostoiévski

4)      Uma sugestão de roteiro para ler seus romances

1 – Sobre o autor

Dostoiévski nasceu em 1821, filho do que se denominava nobreza naquela época na Rússia, mas que se referia mesmo a pessoas livres. A grande maioria da população russa vivia sob o regime da servidão, em que as pessoas eram propriedade de algum nobre, propriedade essa que podia ser vendida isoladamente ou junto com a terra. A família, no entanto, não possuía grandes posses. Seu pai, Mikhail Andriéievitch, era médico no Hospital de Pobres da Escola Médica de Moscou, onde também moravam os Dostoiévski. Considerado um homem austero, desconfiado, metódico, muito autoritário, o pai também era afeito a excessos sentimentais, característica bastante presente na cultura russa. A mãe, Maria Fiodoróvna Dostoievskaia, fazia o contraponto do pai, com sua doçura e sofrimento silencioso devido à condição financeira insuficiente. O futuro grande romancista foi batizado como Fiodor Mikhailovitch Dostoiévski e sempre foi muito ligado ao seu irmão mais velho Mikhail.

Durante a infância, a educação obedecia uma verdadeira disciplina militar, com aulas de latim ministradas pelo pai, além da leitura em conjunto da Bíblia, da História da Rússia e de diversos poetas russos, entre os quais Púchkin. A relação de Dostoiévski com seu pai resultou em várias análises posteriores, entre as quais destaca-se o texto de Freud, Dostoiévski e o Parricídio. Neste texto, o psicanalista austríaco sugere que a obra Os Irmãos Karamázov, de Dostoiévski, segue o mesmo roteiro do parricídio, também presente em outras duas das mais importantes obras da literatura universal, Édipo Rei, de Sófocles, e Hamlet, de Shakespeare. Como não parece haver um consenso sobre o acontecimento da morte do pai de Dostoiévski (para muitos biógrafos ele teria sido assassinado pelos seus servos da pequena propriedade rural que havia adquirido), também não existe convergência entre os estudiosos acerca da interpretação de Freud. Ninguém, no entanto, põe em dúvida a importância da relação de Dostoiévski com seu pai na sua literatura.

Aos 12 anos, juntamente com seu irmão, foi morar na casa de um instrutor de francês, matemática e estudos eslavos, onde também liam muito alguns dos autores que foram marcantes para sua personalidade: Walter Scott, Dickens, George Sand, Vitor Hugo e Púchkin. É desta época a sua idolatria por Púchkin e que o acompanhará até o fim da vida. Posteriormente foi enviado para estudar na Escola Militar em São Petersburgo, onde algumas características de sua personalidade começaram a se manifestar: tinha enorme incapacidade de se adaptar ao meio estudantil, em função de excessivo amor-próprio, e sua desconfiança e timidez. Estas características estarão presentes em algumas importantes obras suas, especialmente em Memórias do Subterrâneo. Seu isolamento o coloca em contato com as obras de outros grandes nomes da literatura da época ou um pouco anterior, como Balzac, Goethe, Schiller, Racine e Corneille.

Nessa época aparecem também os primeiros sinais de outra característica que acompanhará Dostoiévski durante toda sua vida: a dificuldade em lidar com as finanças.

Depois da morte do pai, em 1844, pede demissão da Academia Militar e, diante de uma vida mais livre, que era completada pela frequência a teatros, concertos e casas de jogos, Dostoiévski inicia a redação de seu primeiro romance, Pobre Gente. A obra recebeu enorme aclamação pela crítica, especialmente do poderoso crítico literário Bielinski. O sucesso subiu à cabeça e as próximas, obras, mesmo que hoje consideradas importantes para a formação dele como escritor, receberam críticas bastante negativas. Algumas foram até mesmo consideradas cópias de Gógol, outro escritor russo apenas alguns anos mais velho que Dostoiévski. Rompeu com seus colegas intelectuais da época, Nekrássov e Turguêniev, afundou-se em dívidas e isolou-se cada vez mais. Acabou juntando-se a um grupo de niilistas revolucionários e propagandistas de novas ideias.

Dostoievski ingressou no Círculo de Petrachévski, grupo de ideais progressistas, formado por universitários, artistas e pequenos burgueses, que se reuniam para falar de literatura, política e criticar o regime do Czar Nicolau I. Também fez parte do grupo de Spéchniev, este mais radical e voltado para a ação política, mas acerca do qual restam poucas informações.

Em função de sua participação no Círculo de Petrachévski, iniciou-se uma outra das grandes fases que marcaram a vida de Dostoiévski. Junto com alguns colegas, ele foi denunciado em 1949 e foi levado preso para a Fortaleza de Pedro e Paulo, onde permaneceu por vários meses. A prisão não o impediu de escrever um pequeno romance, O Pequeno Herói, sobre o despertar sexual de um garoto de 11 anos. Os membros do grupo foram levados a julgamento e diversos deles, entre os quais Dostoévski, foram condenados à morte em praça pública. Diante do pelotão de fuzilamento, com os olhos já vendados e preparados para os tiros, alguém agitou o lenço, os clarins tocaram e ouviu-se a voz do General de plantão anunciando que o Czar, “em sua inefável clemência”, lhes concedia a vida. A pena foi comutada para dez anos na Sibéria, sendo 4 na prisão e o restante prestando serviços ao Exército. O episódio marcou a vida de Dostoiévski e foi relatado algumas vezes em sua obra. Teria dividido seus últimos minutos de vida em três partes: dois minutos para se despedir dos amigos, dois para refletir sobre o que será a morte e outro para olhar o mundo pela última vez.

A experiência na Sibéria mudou o artista para sempre. Seus maiores romances foram escritos depois dos anos na prisão e serviços ao Exército. Ele mesmo reconheceu o efeito deste período sobre sua vida. Acreditava que, sendo um dos poucos nobres ali, teve a oportunidade de conhecer o verdadeiro povo russo, convivendo com homens comuns do povo, criminosos de todo tipo, assassinos, criminosos políticos, estrangeiros e pessoas de todos os lugares da Rússia. As condições da prisão eram péssimas e reinava a violência dos carcereiros, os trabalhos forçados inúteis e a total impossibilidade de fuga. Compreendeu ali o que ele chamava de interior do povo russo e reforçou um de seus princípios mais fundamentais e que o acompanhou em toda a sua obra: o de que o livre arbítrio e a busca pela liberdade estão na constituição psíquica de qualquer indivíduo. Liberdade e livre arbítrio para ele significavam manter a capacidade de recusar a servidão, a prisão e a violência dos carcereiros mais perversos, mesmo que apenas em pensamento. O único livro a que tinha acesso nos primeiros quatro anos era a Bíblia ortodoxa, que lhe permitiu tornar-se um profundo conhecedor do Cristo primitivo e da comunidade cristã, outro aspecto que o acompanhará para sempre na literatura. Ou seja, o período da prisão forjou o futuro escritor de alguns dos mais belos romances da história: o apego ao eslavismo, o combate ao progresso técnico e às ideias niilistas expostas no pensamento radical dos socialistas e dos ocidentalistas, o amor cristão como base para a vida social e o livre arbítrio como possibilidade de construção da vida na fé ortodoxa. 

Quando, em 1854, deixou a prisão para tornar-se soldado de um batalhão da Sibéria, em pouco tempo casou-se com sua primeira esposa, Maria Dimitriévna. O marido alcoólatra havia falecido e a deixou com o filho Pável Issaev, adotado por Dostoiévski. O casamento mostrou-se uma grande frustração para ambos: Maria por descobrir, na noite de núpcias, a epilepsia do novo marido, e Dostoiévski em função do temperamento irritável, mórbido e fatalista da esposa, associados à tuberculose que a levou à morte alguns anos depois já em São Petersburgo.

Nos anos de Sibéria não houve produção artística, apenas notas acerca dos companheiros de prisão e que resultaram no belo relato Recordações da Casa dos Mortos. Seu irmão, Mikhail, por sua vez havia criado uma pequena editora, que publicou alguns de seus romances anteriores.

Em 1859, o novo Czar, Alexandre II, autorizou o seu regresso para São Petersburgo, o que, em função de seu passado revolucionário, não o evitará de ter que conviver pelo resto de sua vida com a censura prévia a tudo que viria a escrever. Junto com seu irmão, editou a revista O Tempo, onde publicou Humilhados e Ofendidos, além de contribuições de Turguêniev e Strákov. Essa obra o reconduziu à fama perdida, mesmo que não tenha tido boa recepção da crítica. O texto sobre os relatos na prisão, Recordações da Casa dos Mortos, no entanto, tornou Dostoiévski novamente um autor aclamado pela crítica e público. Conta-se que o próprio Czar teria chorado ao ler a obra.

Logo após a morte de sua primeira esposa, casou-se com Anna Grigórievna, de apenas 18 anos, e que havia sido contratada como estenógrafa enquanto escrevia O Jogador. O novo casamento terá grande influência sobre sua vida, em função do temperamento atencioso e estruturado de Anna. Ela cuidará de suas finanças, que ele insistirá em desorganizar em função do vício no jogo e de sua extrema condescendência com as demandas do enteado e da esposa de seu irmão Mikhail, falecido.

A partir de então, Dostoievski passou cada vez mais a se tornar o grande escritor que estava destinado a ser. Com sua obra Memórias do Subterrâneo, Dostoievski deixou de ser um imitador de escolas anteriores (como a crítica continuava a se referir a ele) e tornou-se o escritor das profundidades do psiquismo humano, dos problemas metafísicos e da consciência universal. Esta é uma obra de um pessimismo azedo, anti-racionalista, extremamente depressiva e que retrata a trajetória de um sujeito que sofre o abandono das relações sociais, tem ataques de epilepsia sugeridos e se torna um niilista, mas cuja hiperconsciência não o impede de perceber os desajustes que o radicalismo lhe impõe.

Todas as principais características da personalidade de Dostoiévski estarão presentes nas suas obras do que se denominou de maturidade do autor: seu isolamento social, dificuldades de relacionamento, sentimento de exclusão permanente, a saúde frágil, em especial os frequentes ataques de epilepsia e o enfisema pulmonar. Tudo isso associado às dificuldades financeiras, que o obrigaram mesmo a fugir para Dresden por alguns anos e a mendigar por frequentes adiantamentos dos editores, e o vício no jogo, que se manifestava somente quando estava no exterior. Além disso era tomado por uma religiosidade extremada e por um eslavofilismo acentuado e pela luta contra os radicais niilistas socialistas e ocidentalistas.

Faleceu em 28 de janeiro de 1880, após um ataque de hemorragia pulmonar. Seu funeral foi um dos maiores eventos da Rússia de seu tempo, com a presença estimada de mais de 30 mil pessoas. Para seu biógrafo H. Troyat, “começará então a verdadeira vida de Dostoiévski, fora do tempo e do espaço”.

2 – O Contexto Sócio Cultural

O século em que Dostoievski viveu foi a era de ouro da literatura russa. Não bastassem os dois grandes e mais conhecidos nomes, o próprio Dostoiévski e Lev Tolstói, eles foram contemporâneos de outros grandes escritores, como Turguêniev, Tchekov, Púchkin, Gogol, Tchernichévski, Herzen e inúmeros outros menos conhecidos. O que movia todos eles era o caldo social que fervilhava por toda Europa e também na quase feudal e mais distante Rússia. O mundo estava em luta contra a aristocracia e observava o florescimento da industrialização em todos os países. Foram anos de grandes transformações econômicas e sociais.

No final do século XVIII, as monarquias europeias, capitaneadas pelo Sacro Império Romano, começaram a ser desafiadas pelas novas ideias revolucionárias. O ataque mais forte foi comandado por um ambicioso militar corso, Napoleão Bonaparte e suas guerras contra os impérios. Sua derrota, acontecida pela tentativa de subjugar a Rússia, foi maravilhosamente narrada por Tolstói em seu Guerra e Paz. Com Napoleão vencido, refluíram as monarquias, mas os ideais revolucionários se mantiveram intactos entre as elites emergentes e classes trabalhadoras nas crescentes aglomerações urbanas. Durante muito tempo, estiveram juntos na luta contra as monarquias os burgueses emergentes e os trabalhadores em toda a Europa. Ao mesmo tempo, cresciam as ideias materialistas, cujos primeiros sinais haviam sido lançados pelo iluminismo, especialmente na Alemanha, Inglaterra e França. A literatura nestes países, por sua vez, deixava de ser folhetinesca para se integrar e frequentemente antecipar as demandas culturais.

A aliança entre as classes trabalhadoras e a burguesia se quebrou com as revoluções de 1848, que foi denominada Primavera dos Povos. Elas se espalharam por toda a Europa e tinham por objetivo derrubar definitivamente os regimes autocráticos, enfrentar a miséria decorrente da Revolução Industrial que atraía cada vez mais pessoas para as cidades e a falta de representação política das classes médias e dos nacionalistas. A revolução de 1848 na França é apenas a mais visível. Outras 50 nações também experimentaram movimentos locais, como a abolição da escravidão no Império Austro-Húngaro, o fim do absolutismo na Dinamarca, revoluções na Alemanha, Polônia, Itália, Grã-Bretanha, Espanha e Portugal. Na França, o movimento iniciou-se pelo que foi conhecido pelo nome de Comuna de Paris, o primeiro, e para muitos único, governo efetivamente popular da história. Ele levou inicialmente à fuga da burguesia da cidade de Paris e a subsequente derrubada do novo regime pelas forças militares burguesas e prussianas. Culminou com a eleição do primeiro presidente, Luís Bonaparte, sobrinho de Napoleão, que, finalmente, tornou-se imperador. Trabalhadores e ativistas das suas causas foram perseguidos, sendo milhares deles assassinados e fuzilados, além de mais de 30 mil exilados para as colônias francesas. Os acontecimentos desta época, com a definitiva separação entre burguesia e classes trabalhadoras, motivaram a famosa afirmação de Marx, em seu Dezoito Brumário: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira como tragédia, a segunda como farsa”.

Dostoiévski participou, na Rússia, da primeira onda destes movimentos. Influenciados pelo socialismo utópico e cristão dos franceses Fourrier e Saint-Simon, o Círculo de Petratchévski se reunia para discutir política, literatura e o fim da servidão. Nunca partiu para a ação, no entanto. A servidão somente chegou ao fim com a ascensão do Czar Alexandre, em 1861, implantando um modelo de propriedade e exploração compartilhada da terra.

Os eventos de 1848 na Europa tiveram profundos impactos no pensamento de Dostoiévski. Ele acusava o materialismo e seus consequentes niilismo, individualismo, socialismo racionalista e industrialismo, como o mal de siécle, não apenas no Ocidente, como também na sua santa mãe Rússia. Utilizou grande parte de sua literatura para atacar os movimentos radicais, tanto o nascente socialismo materialista e utópico, que agora partia para a ação, quanto o industrialismo burguês, que apontava para um mundo dominado pela ciência e tecnologia. Na sua compreensão, ambos afastavam as pessoas dos valores cristãos ortodoxos da vida em comunidade e do livre arbítrio. Praticamente todas as suas grandes obras representam a sua luta contra o racionalismo, o niilismo e o ocidentalismo que floresciam entre a juventude e a intelectualidade russas. De outro lado, escrevia e agia em defesa de um certo tipo de eslavismo fundado na ortodoxia da Igreja Ortodoxa, que acreditava possuir um poder regenerador da sociedade mundial, do modelo de organização camponesa baseada na comunidade, com o amor ao Czar-pai à frente e do livre arbítrio como valor essencial do sujeito, conforme pregado pelo Cristo dos Evangelhos.

3 – Fases da Literatura de Dostoiévski

A obra literária de Dostoiévski é geralmente dividida pelos críticos em três fases: Novelas da Juventude, Obras de Transição e Romances da Maturidade. Não pretendo me alongar nesta análise. Apenas listar estas obras conforme a maioria dos seus estudiosos as classificam.

Novelas da Juventude

Seu primeiro livro, Pobre Gente, foi escrito em 1846, quando tinha apenas 25 anos e teria tido por inspiração o romance O Capote, de Gógol. Como já informei acima, o livro foi muito bem recebido pela crítica literária da época, especialmente pelo todo poderoso Vissarión Grigórievitch Belinski. As suas obras desta fase, consideradas românticas, revelam claras influências da literatura francesa da época, mas sobretudo de seu grande mestre Aleksandr Sergueievich Púchkin e de seu contemporâneo Nikolai Vasilievich Gógol. Sua identificação com estes foi tão grande que algumas de suas obras foram acusadas de serem meras cópias ou plágios destes autores. São caracterizadas por uma espécie de romantismo ingênuo, forte defesa dos valores românticos do povo camponês, e alguns sinais de combate à servidão. São todas obras menos volumosas. Alguns de seus críticos afirmam que estas obras já continham as principais ideias que marcaram os grandes romances da maturidade. São as seguintes as novelas desta fase:

1846 – Pobre Gente, O Duplo, Senhor Prokhártchin

1847 – Um Romance em Nove Cartas, A Dona da Casa

1848 – Noites Brancas, Polzunkov, Coração Frágil, O Ladrão Honrado, A Mulher Alheia, A Árvore de Natal, Niétochka Niezvânova, O Pequeno Herói

1859 - O Sonho do Tio, A Granja de Stiepântchikovo

Obras de Transição

Dostoiévski passou 10 anos sem poder escrever, os quatro anos em que esteve preso na Sibéria e os restantes servindo como soldado num batalhão do exército, também na Sibéria. Sua experiência de quase morte, além do que ele afirmava ter sido sua convivência com os homens simples do povo russo, tiveram enorme influência na sua literatura a partir de então. Ela se torna mais densa, com forte cunho autobiográfico e profundidade das características psicológicas dos personagens. De forma irônica, e às vezes cômica, passa a enfrentar o que considerava serem os principais problemas sócio culturais da Rússia de então. Nelas, os problemas elaborados romanticamente na fase anterior, estão presentes, mas ainda não com a força e profundidade de suas obras da maturidade. Mas esta fase já está repleta de textos da mais alta importância, como a sua experiência dos anos de confinamento (Memória da Casa dos Mortos), a crítica ao ideal tecnicista do Ocidente (Notas de Inverno... e O Crocodilo) e o ataque ao niilismo (Memórias do Subterrâneo). Toda a sua literatura, a partir de então, passou a necessitar de censura prévia, em razão de seu passado revolucionário. Apesar de O Sonho do Tio e A Aldeia de Stiepântchikovo serem frequentemente incluídas nesta fase em função da data de publicação, alguns críticos preferem associar elas ainda ao romantismo característico da primeira fase. Optei por seguir a estrutura proposta por estes últimos.

1861 – Humilhados e Ofendidos

1862 – Memórias da Casa dos Mortos, Uma História Aborrecida

1863 – Notas de Inverno sobre Impressões de Verão

1864 – Memórias do Subterrâneo

1865 – O Crocodilo

Romances da Maturidade

Esta fase se encerra com a morte de Dostoiévski, no início de 1881, logo após concluir Os Irmãos Karamázov. O autor atinge o topo de sua carreira literária e finca seu nome definitivamente entre os mais importantes escritores de todos os tempos. Junto com Memórias do Subterrâneo, da fase anterior, as obras desta fase formam as bases da filosofia existencialista e serviram de inspiração para inúmeros pensadores que se seguiram, com destaque para Nietzsche e Freud. São caracterizadas pela profundidade da psicologia dos seus personagens e pela análise apurada dos principais conflitos sociais de sua época. Os limites da maldade humana e de suas razões, fundadas na racionalidade e niilismo, talvez não tenham recebido exposição melhor em toda a literatura universal. Também houve espaço, entretanto, para caracterizações da idealização do bem em romances como O Idiota e seu personagem central, o Príncipe Míchkin, e em personagens femininas, como a coxa e meio débil mental Maria, de Os Demônios, e a prostituta Sônia, de Crime e Castigo, entre outras.

Esta época também foi dedicada por Dostoiévski ao planejamento do que ele considerava sua obra maior, A História de um Grande Pecador, que nunca foi concluída. Seus textos Crime e Castigo, Os Demônios e Os Irmãos Karamázov, às vezes são incluídos como parte deste plano. Neste período, o autor também escreveu alguns textos menores, como a do Mujique Marrei, para muitos uma espécie de memórias em torno da morte de seu próprio pai, e O Sonho de um Homem Ridículo, este considerada a única obra de Dostoiévski em que a maldade humana consegue alcançar algum tipo de redenção, através do amor fraternal.

1866 – Crime e Castigo

1867 – O Jogador

1869 – O Idiota

1870 – O Eterno Marido

1872 – Os Demônios

1875 – O Adolescente

1877 – O Sonho de um Homem Ridículo

1881 – Os Irmãos Karamázov

4 – Sugestão para um Roteiro de Leitura

É claro que a gente sempre pode escolher, de forma aleatória, um ou outro romance de um escritor que produziu uma vasta obra, como é o caso de Dostoiévski. E é assim que a maioria das pessoas faz, o que já é muito bom, em se tratando de literatura clássica. Na minha opinião, no entanto, Dostoiévski é um daqueles autores que merecem uma mergulhada mais ampla em sua produção. Alguns de seus textos podem e, muitas vezes, devem ser lidos mais de uma vez. A cada nova leitura, novas descobertas são feitas, novos olhares são descortinados, novos personagens são melhor compreendidos. A literatura clássica é repleta de exemplos de autores que merecem ser estudados e lidos de forma abrangente e aprofundada: Shakespeare, Tolstói, Flaubert, Proust, Kafka, Camus e os brasileiros Machado de Assis e Graciliano Ramos, entre outros.

Como salientei logo na introdução, Dostoiévski não é fácil ou simples. Seu texto é complexo e, para dizer o mínimo, exige atenção e determinação. Alguns de seus grandes romances requerem semanas de leitura, mesmo daquelas pessoas já mais acostumadas ao autor. Além disso, pode ser bastante complicado compreender as psicologias dos personagens, seus conflitos pessoais e com a sociedade, sem ter um mínimo de entendimento do contexto sócio cultural da época em que foram escritos, os valores e crenças do autor e suas próprias dificuldades de vida. Estes são conselhos valiosos para compreender qualquer grande escritor. Por conta disso, procurei dispor este artigo de uma forma que facilite a compreensão da literatura de Dostoiévski aos iniciantes e mesmo a alguns dos já um pouco mais iniciados, como foi o meu próprio caso na segunda leitura de sua obra. Além disso, para que o leitor não se desespere diante da complexidade de alguns textos, como Os Demônios, ou da aparente pieguice romântica de outros, como Noites Brancas ou Niétochka Niezvânova, preparei um roteiro de leitura na intenção de ajudar àqueles que desejam se dedicar a ampliar o conhecimento de sua obra. O roteiro segue a ideia de que os leitores irão buscar uma melhor compreensão dos grandes romances de Dostoiévski, pelo menos os mais conhecidos, como Os Irmãos Karamázov e Crime e Castigo.

Minha sugestão de roteiro começa por Memórias da Casa dos Mortos, uma espécie de resumo das anotações e impressões que Dostoiévski teve de seus companheiros de prisão na Sibéria. O próprio autor revela que aqueles anos lhe permitiram a compreensão da alma do povo pobre russo, sua religiosidade, seu amor à santa mãe Rússia e seu apego à liberdade, mesmo que seja somente em pensamento, dadas as condições materiais da prisão.

Em seguida, sugiro a leitura de Notas de Inverno sobre Impressões de Verão e de Memórias do Subterrâneo. Estas duas obras revelam os dois principais adversários contra os quais Dostoiévski irá lutar nas suas obras posteriores: a racionalidade tecnicista importada do Ocidente, no primeiro, e os efeitos psicológicos do niilismo sobre a personalidade e sobre a sociedade, no segundo. Especialmente Memórias do Subterrâneo, que está na base do Homem do Ressentimento, de Nietzche, e teria contribuído para a construção da ideia de inconsciente por Freud. Em Dostoiévski, este texto discute os efeitos, para o indivíduo e para a sociedade, dos conflitos entre a pregação ingênua e totalitária de uma racionalidade humana fornecida de fora para dentro, sugerida por Tchernichévski, em seu O que Fazer?  e os valores intrínsecos e ironicamente irracionais do livre arbítrio cristão.

A partir daqui, o leitor estará pronto para se aventurar nos grandes romances de Dostoiévski, como Os Irmão Karamázov, Crime e Castigo e Os Demônios. Não vou me estender sobre estes textos, porque cada um deles nos exigiria inúmeras páginas de análise. Prometo voltar a eles em algum momento futuro. Se o leitor desejar, pode entremear estas leituras com alguns textos mais fáceis de assimilar, como Pobre Gente e seu romantismo relativamente ingênuo e algumas novelas já da maturidade, como O Eterno Marido e O Jogador. O último deles, em especial, tem um apelo autobiográfico bem interessante, na medida em que Dostoiévski, além das dificuldades financeiras e da epilepsia, era também um viciado no jogo, que não observava limites (em uma ocasião, em Dresden, chegou mesmo a empenhar o casaco de sua esposa). O interessante de sua personalidade é que o vício só se revelava quando estava fora da Rússia.

O Idiota, no entanto, é uma leitura à parte. Todo escrito no exterior, tendo sido iniciado em Genebra e concluído em Florença, em 1869, o romance foi aparecendo parceladamente na revista O Mensageiro Russo. Não obedece uma narrativa ordenada e lógica, perdendo-se muitas vezes em episódios à margem, talvez em função da forma como foi sendo escrito e publicado, em viagem constante. O seu personagem central, o Príncipe Míchkin é, sem dúvida, uma das figuras mais estranhas, mais ambíguas, mais inexplicáveis e místicas de todas as suas criações. Ele possui muito de suas próprias características, como a epilepsia, o episódio da sua condenação à morte por fuzilamento e salvação no último instante e as suas emoções artísticas com a obra de Holbein, a Descida da Cruz. É um personagem definitivamente indecifrável: um epiléptico? Um retardado mental? Um idiota? Ao mesmo tempo era uma criatura excepcional, procurada por todos quando necessitavam de decisões difíceis, mesmo que também zombassem dele. Sua bondade inumana, capacidade de sofrer o sofrimento alheio e amor pelos mais fracos e humildes, em especial as crianças, fizeram com que, para muitos críticos, fosse comparado ao próprio Cristo. Não é o Cristo, mas a sua existência humana remete a outra existência que não é humana, a do Homem-Deus. Seu valor literário vai também na direção de revelar toda a religiosidade de Dostoiévski e sua visão do cristianismo.

Finalmente, mas não menos importante, recomendo a leitura de O Sonho de Um Homem Ridículo. Trata-se de um texto bastante mais reduzido do que os demais e sua importância decorre do fato de ser o único momento em toda a literatura da Dostoiévski em que a maldade humana tem a oportunidade de alcançar algum tipo de redenção. Esta é alcançada através de uma espécie de amor comunitário, um amor desprovido de interesses e genuinamente cristão. Ao final não se tem certeza se esta redenção acontece realmente ou se somente se realiza no sonho de morte do personagem.

Desejo a todos uma ótima leitura deste que é, sem a menor dúvida, um dos maiores escritores de todos os tempos. Para mim, como já afirmei, inigualável!

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