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A LIDERANÇA SOB O OLHAR DE MAQUIAVEL

  • celsonhupfer
  • 10 de set. de 2024
  • 17 min de leitura

O que Maquiavel tem a ensinar para quem lidera hoje!


Quem nunca ouviu expressões como: “O meu chefe é muito maquiavélico” ou “Isto é de um maquiavelismo sem igual”? Da mesma maneira, vários aforismos sobre uma liderança dita “maquiavélica” são atribuídas a Maquiavel, alguns verdadeiros, outros falsos, mas frequentemente utilizados de forma descontextualizada ou para reforçar um modo de liderança percebido como amoral, cruel e implacável.

Recordemos alguns deles: “Os fins justificam os meios”! “Melhor ser temido do que ser amado”! “O bem deve ser feito aos poucos. O mal de uma só vez”!

Esta maneira de interpretar o pensamento de Maquiavel surgiu imediatamente após a publicação de seu livro mais conhecido até hoje, O Príncipe, em 1513, fruto da forte reação que suas ideias provocaram sobre a moralidade religiosa da época. Apesar de suas concepções sobre como alcançar e manter o poder servirem de influência para gestores e líderes políticos e organizacionais desde então até os dias de hoje, os termos “maquiavelismo” e “maquiavélico” são naturalmente associados na mente popular a engano, coerção, crueldade ou uso de qualquer meio para alcançar os fins.

A razão básica para esta interpretação decorre de a obra propor uma clara distinção entre a ação moral e a ação política propriamente dita. A primeira é aquela que se realiza na vida privada dos indivíduos e é regida pela revelação, pelo transcendente e cujas explicações objetivavam as justificações e se destinavam à salvação das almas. A segunda fundava-se no que acontecia na vida real e devia abster-se da moral religiosa e servir à ação política na vida pública. Neste sentido, portanto, ela necessitava uma explicação amoral, cujo objetivo era a liberdade e o bem do Estado, da coletividade.

Ao longo dos séculos, O Príncipe tornou-se leitura obrigatória de reis, imperadores e governantes no Ocidente e foi identificado como o primeiro grande texto de ciência política da modernidade. Mas a sua leitura não se ateve apenas ao estudo da administração pública. A partir dos anos 1980 verificou-se um significativo crescimento no interesse pelas ideias de Maquiavel também na literatura de negócios e da liderança. Para se ter uma ideia, antes de 1980, uma das mais importantes bases de literatura científica, a Ebsco, registrava apenas dois textos para os termos “leadership e Machiavelli”. Os resultados sobem para 55 entre 1981 e 2000 e para 83 entre 2001 e 2015. Surgiram-se diversos manuais de liderança baseados nos ensinamentos de Maquiavel e criou-se até mesmo uma escala denominada “Mach” (de Machiavelli), cujo objetivo era medir quanto de engano e manipulação alguém aceitaria praticar para atingir determinados fins, além de estimar o poder e controle organizacional que este sujeito estaria disposto a exercer.

Tratava-se, evidentemente, de uma grande falta de compreensão da obra de Maquiavel, utilizada para justificar concepções sobre liderança muito em voga no final dos anos 1970 e começo de 1980, quando o pensamento neoliberal começava a se impor na economia. Era um período em que a literatura e pesquisa da liderança enfatizava a personalidade carismática e forte da liderança, como essenciais para fazer frente às ideias de bem-estar social e maior participação dos funcionários, que se desenvolveram depois das experiências totalitárias dos anos 1930 e 1940. O novo culto ao líder “Great Man”, entretanto, viu-se logo associado aos escândalos financeiros dos anos 1990, especialmente nos Estados Unidos e o estudo de Maquiavel nas disciplinas organizacionais voltou-se então para outros aspectos relevantes de sua obra, aspectos estes que já há algum tempo estava no radar dos estudiosos das ciências políticas. São estes aspectos que pretendo discutir um pouco melhor nos próximos parágrafos. Eles representam uma espécie de elo perdido do pensamento deste importante pensador italiano.

Quem foi Maquiavel

Nicolò di Bernardo dei Machiavelli nasceu em 3 de maio de 1469 em Florença e morreu na mesma cidade em 21 de junho de 1527. Viveu sua juventude sob o esplendor político da República Fiorentina, à época governada por Lourenço de Médici. Era o terceiro de quatro filhos de Bernardo e Bartolomea. Seu pai era jurista e tesoureiro da província de Marca de Ancona. A família empobrecida buscou dar-lhe alguma educação em latim, ábaco e fundamentos da língua grega, mas esta educação era claramente inferior à de outros humanistas de sua época. Entrou para a política aos 29 anos, no cargo de Secretário da Segunda Chancelaria de Florença, onde teve a oportunidade de observar o comportamento de grandes nomes da época. A segunda chancelaria ocupava-se das guerras e da política interna e normalmente submetia-se à primeira chancelaria, responsável pela política externa.

O cargo lhe permitiu diversas viagens às cortes da Itália e Europa, para negociar acordos com os monarcas locais. Entre 1502 e 1503 conheceu César Borgia, filho do Papa Alexandre VII e conhecido como Duque Valentino, cruel e ambicioso “condottiere” que serviu de inspiração para o livro mais famoso de Maquiavel, “O Príncipe”.

Depois da morte de César Bórgia e da queda de Florença para o exército da Espanha, que havia se aliado ao Papa Júlio II em sua luta contra o reestabelecimento do Sacro Império Romano-Germânico, Maquiavel viu-se destituído de suas funções. Foi acusado de ser um dos responsáveis por uma política anti-Médici, cuja família havia sido reconduzida ao governo. Preso e torturado, foi acusado de ser adepto do movimento republicano. Com a morte de Júlio II e a eleição de João de Médici, como Leão X, promoveu-se uma ampla anistia, o que permitiu a libertação também de Maquiavel.

Libertado, retirou-se para uma propriedade próxima à comuna de San Casciano dei Bangni, província de Florença, onde viveu no ostracismo e inatividade política até sua morte. Foi neste período que escreveu suas obras mais conhecidas, “O Príncipe”, em 1513 e publicado em 1532, e o “Discorsis”, escrito em 1516 e publicado em 1531. Além disso, escreveu inúmeras outras obras, entre peças de teatro e poemas. Em 1520 chegou a ser contratado pelo Papa Clemente VII como historiador da república, para escrever a História de Florença, obra para a qual dedicou os sete últimos anos de sua vida. Morreu em 21 de junho de 1527 e foi enterrado no túmulo da família na Basílica de Santa Cruz em Florença.

Os dois principais textos de Maquiavel

Até recentemente, entre os escritos de Maquiavel, apenas “O Príncipe” merecia estudos mais aprofundados junto ao pessoal da academia, especialmente nas Ciências Políticas e na Administração. Nas décadas mais recentes, entretanto, também seu “Discorsis” passou a ser arduamente estudado, por revelar um Maquiavel que tinha grande apreço à ideia de liberdade. Estes escritos contribuíram muito para uma compreensão mais ampla das ideias do pensador fiorentino, ideias estas que já estavam presentes no seu primeiro livro, mas que eram frequentemente obscurecidas pela estigmatização que se criou em torno de seu nome, pelo menos na mente popular.

O Príncipe” foi escrito a partir das observações de Maquiavel acerca das ações reais dos chefes de estados de sua época. Apesar de inspirado na  figura de um Borgia, foi dedicado a Lorenzo de Médici, que governou Florença a partir de 1513. Para ele, “todos os governos que tiveram e tem autoridade sobre os homens, foram e são ou repúblicas ou principados”. Em “O Príncipe” tratará ele apenas do governo nos principados, que são “ou hereditários, quando seu sangue senhorial é nobre há já longo tempo, ou novos.” Estes últimos são ou totalmente novos ou como membros acrescidos ao Estado hereditário do príncipe que os adquire.

Como já apontado mais acima, “O Príncipe” significou um rompimento das normas políticas de concepções teológicas vindas da Idade Média, transformando-as em meros frutos da observação direta e quotidiana da arte de governar. Antecipando outros pensadores nos mais diversos campos da Filosofia, Maquiavel introduziu o método positivo da apreciação das realidades sociais para daí retirar regras para o bom governo dos estados. Significa dizer que seu método baseia-se na observação da vida real, objetiva. Como o propósito do Estado é sempre a sua segurança e sua liberdade perante os outros estados, o Príncipe deve se utilizar de todos os métodos e ações necessários para a consecução deste objetivo. Por isso constitui-se lícito tudo aquilo que favorece o governo, até mesmo a crueldade e a perfídia, se assim for necessário, apesar de nem sempre poder ser aprovados pela moral tradicional. A política é um jogo de forças em que todos os meios de luta são bons e louváveis, porque se trata de proteger, salvar e defender o Estado. Se o Estado não consegue assegurar sua liberdade, como pode garantir a liberdade de seus cidadãos?

Os homens são maus e isso é imutável e o jogo político dá-se entre o príncipe, os poderosos e os fracos. Para chegar ou manter o poder, o príncipe deve procurar ser apoiado pelos fracos que são a maioria e individualmente incapazes de derrubá-lo, por serem fracos, mal armados e desorganizados. Ao mesmo tempo deve procurar conter os poderosos, dividindo-os, forjando alianças ou massacrando-os, dependendo das circunstâncias. A índole má dos homens leva os fracos a tender à preguiça e os poderosos à corrupção. Mesmo assim, deve ser complacente com os fracos e implacável com os poderosos.

Maquiavel utiliza-se da metáfora do leão e da raposa para postular que a essência da política é a combinação entre o uso da força e da astúcia como chaves da conquista e da manutenção do poder. Por isso, compreende que deve contar com o que chama de “Fortuna” e “Virtu”. A Fortuna é na sua visão uma espécie de imponderável, o acaso, o imprevisível, o que chamaríamos hoje de sorte ou azar. A Virtu é o saber atuar de acordo com a necessidade do momento, a vontade-força, qualidade fundamental do príncipe, ao que daríamos o nome hoje de experiência, conhecimento, motivação. Ambas devem caminhar juntas e, para que o príncipe possa se aproveitar da Fortuna, deve estar preparado para a identificar e a utilizar e isto significa ter a Virtu. Por isso, no capítulo XVII preconiza que é mister que o príncipe tenha o espírito preparado para se adaptar às variações das circunstâncias e da fortuna e a manter-se tanto quanto possível no caminho do bem, mas pronto igualmente a enveredar pelo mal, quando for necessário.

Seu texto seguinte, “Discorsis – Comentários sobre a Primeira Década de Tito Lívio”, é uma análise comentada, à luz do Renascimento Italiano, dos 10 primeiros livros (de um total de 142) de Tito Lívio sobre a história de Roma. Aqui as questões sobre as quais Maquiavel se interroga são de outra natureza: dizem respeito às leis, à liberdade, às instituições políticas e seu funcionamento numa república, ao governo constitucional e outros temas raramente associados ao seu nome. Ele compreendia que a estabilidade dos 300 anos da república romana deveria servir como exemplo de governo para os seus tempos. Roma manteve-se longamente como Estado, apesar dos inúmeros acidentes externos que experimentou. Mesmo assim foi capaz de se expandir e superar os conflitos internos sem se destruir. O segredo estava na forma como a Cidade foi formada e nas suas leis. As leis devem estar voltadas, desde a sua fundação, para a segurança do Estado. E, por segurança do Estado, Maquiavel compreende a sua liberdade perante outras nações e perante as ameaças internas. As leis devem permitir o uso da força quando necessário e, em períodos transitórios, podem prever inclusive regimes ditatoriais para recuperar a ordem. Só assim se garantiria a liberdade dos cidadãos, que são os seus guardiões.

Em função deste texto Maquiavel também é interpretado como o mais notável exemplar do ressurgimento da concepção republicana de liberdade. Na Inglaterra suas ideias inspiraram fortemente as pretensões do parlamento contra a coroa, enquanto também influenciavam os precursores da Revolução na França.

O que Maquiavel teria a dizer aos líderes do século XXI

Obviamente Maquiavel escreveu seus textos pensando nos modelos de Estado e de governança de sua época, a da Renascença italiana. Suas observações, interpretações e conselhos, no entanto, foram frequentemente citados e utilizados por líderes e liderados de todo o mundo ocidental, estejam eles pensando nas lideranças políticas ou organizacionais. Especialmente no mundo das organizações, parece que frequentemente se deu preferência àquilo que Maquiavel escreveu de mais controverso. Por isso, o seu O Príncipe, serviu de referência aos estudiosos. Em diversos momentos da literatura mais popular sobre liderança organizacional, utiliza-se Maquiavel para prescrever comportamentos ao líder quando enfrenta situações mais complexas de sua função. O apelo ao pensador faz com que às vezes se recomende ao líder como que “guardar o coração na gaveta” e utilizar exclusivamente a razão em defesa do bem maior da organização. Estas situações existem de fato e líderes são frequentemente solicitados a adotar ações bastante duras quando observadas sob uma ótica mais emocional. Algumas de suas recomendações nestas situações fazem sentido e refletem um bom senso que não necessita que sejam relacionadas à ideia de maldade. Elas, muitas vezes, são apenas necessárias para preservar o todo organizacional e a liberdade de seus indivíduos. Entendo, no entanto, que Maquiavel deve ser pensado de uma forma mais abrangente, até mesmo para fazer justiça ao seu legado e, desta maneira, contribuir para os desafios da liderança neste século de enormes desafios.

Há que compreender que, de uma maneira muito geral, os líderes têm sempre os mesmos grandes desafios, sejam eles nas organizações ou nos Estados. Claro que situações específicas, de localização, época, tamanho etc, implicam em desafios eventualmente diferentes. Mas, em geral, o líder precisa:

- Escolher, manter ou excluir as pessoas que farão parte do grupo;

- Definir ou gerar, sozinho ou junto com sua equipe, um propósito que possa ser compartilhado pelo grupo e que os motive a agir na busca deste propósito;

- Utilizar todos os instrumentos e ferramentas possíveis para garantir a integridade do grupo, Estado ou organização: armas, instituições, recursos materiais, financeiros e humanos, tecnologias, comitês etc.

- Garantir a sustentabilidade da organização ou Estado: não basta garantir a sobrevivência de hoje; é necessário garantir a perenidade (segundo nível da pirâmide de Maslow);

- Construir um arcabouço legal que garanta a segurança jurídica e a liberdade de seus liderados: leis, instituições, instâncias de justiça, polícia, estatutos, normas e procedimentos, responsabilizações, direitos de contratar, promover e demitir etc.

Provavelmente os leitores terão outras tarefas que são inerentes à função da liderança para incluir nesta lista. A verdade é que o líder precisa pensar em como as pessoas se juntam num objetivo, como elas garantem a sua sobrevivência, como se asseguram de um futuro e como garantem a liberdade de ação de suas equipes.

No século XXI, os objetivos gerais não são muito diferentes. O que acontece é que eles parecem vir com novos desafios e novos riscos, aparentemente não presentes em épocas passadas. Não tenho muita certeza disso, porque se no passado os desafios eram diferentes, eram também outros os recursos disponíveis. Mesmo assim vou me arriscar a listar aquilo que consultores, especialistas em diagnósticos de época e outros apontam como os desafios adicionais deste século que está apenas na sua parte inicial.

- A competição parece desorientar líderes, porque ela não vem mais de lugares digamos “seguros”, conhecidos, como o nosso concorrente do outro lado da rua. Vamos a alguns exemplos. Antes tínhamos cinema, tv a cabo, tv aberta. Eles estão aí ainda hoje, mas estão sendo substituídos por streaming, plataformas sociais, vídeos que podem ser acessados ou produzidos gratuitamente por qualquer um. Depois da charrete, os veículos passaram todos a utilizar combustíveis fósseis. Hoje, eles estão ameaçados por veículos elétricos, direção autônoma e mesmo carros voadores. A produção agrícola era um privilégio de climas temperados. Graças à nossa Embrapa, hoje se produz algodão, soja, milho, frutas etc. em praticamente qualquer tipo de solo. O mundo financeiro era ocupado pelos bancões, capazes de atender todas as demandas imaginadas dos seus clientes. Hoje são desafiados por fintechs que literalmente são gestadas e montadas em fundos de quintal por empreendedores quase garotos ainda, cujos propósitos são responder a demandas especializadas, digitalizadas e que não necessitam de enormes infraestruturas físicas. Certamente cada um de nós tem inúmeros outros exemplos deste tipo e talvez mais apropriados.

- Aceleração da mudança. Desde que Heráclito, 500 anos Antes de Cristo, percebeu que “tudo flui” e que “ninguém se banha na mesma água de um rio duas vezes”, a humanidade tem como única certeza a de que nada é certo, tudo muda o tempo todo. Para os religiosos a única certeza talvez seja a da existência de Deus. Ninguém há de discordar, entretanto, que, à medida que o tempo passa, a velocidade da mudança é cada vez maior. Ou pelo menos parece ser. Vai ficando muito difícil para qualquer um de nós manter-se atualizado, acompanhar a velocidade da mudança. Junto vem o temor, que é real, de que até mesmo nós humanos podemos nos tornar obsoletos ou desnecessários num piscar de olhos. Para os que estudam Astronomia esta é também uma quase certeza!

- Uma comunidade de direitos cada vez maior. Não somente em termos de novos direitos que vão sendo exigidos, um número cada vez maior de pessoas reivindicam o direito de ser ouvidos, de participar da vida pública, da organização, o que eram privilégios de algumas elites até bem pouco tempo atrás. O historiador Thomas Marshall observou que o que se pode chamar de comunidade de direitos vem sendo ampliada, especialmente desde o século XVIII: primeiro foram os direitos de liberdade (Revolução Francesa, Independência dos EUA); depois, no século XIX, os direitos políticos e de participação (direito ao voto para todos); no século XX, os direitos sociais e culturais, com direitos de mulheres, negros, índios, orientação sexual, idosos etc.; no século XXI, os direitos de participação na geração da riqueza e dos bens, com a implementação  em todo o mundo de programas de cotas e de renda mínima. A ideia é de que, para participar da comunidade de direitos, as pessoas têm que ter condições objetivas (renda mínima) para exercer seus direitos.

- Inteligência artificial e mídias sociais. Apesar de ainda precisarmos da produção analógica ou bruta propriamente dita para sobreviver, morar, nos movimentar, nos defender etc., é inegável que o mundo virtual está cada vez mais presente em nossas vidas, como oportunidades e como ameaças. Nas mídias digitais, nossos interesses, relacionamentos, gostos, leituras, compras, lazeres etc. vão se tornando matéria prima para alguém lucrar ou tentar direcionar nossas ações futuras. A inteligência artificial abre ao mesmo tempo enormes oportunidades para uns e é ameaça existencial para outros. É preciso ser rápido para não perder a onda, porque ela pode nos afundar. E o pior, como previa o filósofo e psicólogo Jacob Levy Moreno, em seu Quem Sobreviverá, não serão necessariamente os mais dignos que sobreviverão.

- Grandes riscos. O pensador inglês Anthony Giddens chamou de grandes riscos aqueles que ameaçam a nossa existência como pessoas ou como humanidade. Muitos deles sempre estiveram presentes na história de nosso planeta. Outros são novos, criações nossas, provocados por nossa ação. Mas eles nos parecem muito mais ameaçadores hoje por conta do que se convencionou chamar de compressão do espaço-tempo, aquilo que faz com que tudo esteja mais próximo de nós e nos alcance muito mais rápido. A gente tem a impressão de um tudo ao mesmo tempo e agora e aqui. Catástrofes climáticas, pandemias, conflitos nucleares, apagão elétrico, desestruturação do sistema financeiro e, mais recentemente para alguns estudiosos, a inteligência artificial. Tudo isso gera, além de ansiedade em todos nós, a necessidade de líderes estarem permanentemente atentos e preparados para agir. Remediar na maioria das situações é quase impossível.

Mais uma vez, provavelmente cada um de nós tem sua própria lista de desafios e que poderia ser aqui incluída. Considerando o tamanho desses desafios dá para compreender por que a gente tão frequentemente se sinta tentado a recorrer a “salvadores da pátria” ou prefira negar alguns deles. E este começo de novo milênio parece estar ressuscitando alguns destes, especialmente negacionistas que se pretendem também salvadores. Vejamos, portanto, o que Maquiavel teria a nos aconselhar, para que assim possamos cobrar de nossos líderes, tanto nos Estados quanto nas organizações. Ou, como líderes, de que maneira podemos nos aproveitar de seus ensinamentos.

Primeiro, convém lembrar que Maquiavel compreende que o principal propósito de qualquer príncipe (líder) é a liberdade do Estado (organização) que ele governa. Sem liberdade, o Estado (organização) não tem condições de assegurar a estabilidade interna e a defesa contra as ameaças externas. No plano das nações, a ideia de liberdade é refletida por um dos mais importantes princípios da política internacional e da boa governança, que é o da autodeterminação dos estados nacionais. No âmbito das organizações, Maquiavel provavelmente estaria aconselhando líderes a 1) ter um propósito para a organização e 2) garantir a sustentabilidade dela, suas capacidades de concorrer, produzir, se financiar, crescer, de existir hoje e no futuro.

Em seguida, Maquiavel vai nos apontar algumas questões que condicionam a ação do príncipe. São questões relativas à natureza do Estado e à disposição das pessoas.

1)      Formas de governo – Maquiavel observa que existem três tipos de governos: Monarquias, Aristocracias e Governos Populares. Qualquer um deles depende da legitimidade, que é dada pelos liderados. Ao mesmo tempo, todos os estados obedecem a um ciclo de legitimidade e de perda desta legitimidade. A Monarquia deteriorada se transforma em Tirania; a Aristocracia em Oligarquia e o Governo Popular em Anarquia. Como todos os modelos são imperfeitos, uma vez que se deterioram, Maquiavel aceita a hipótese de períodos curtos de Ditadura, quando o príncipe legisla sozinho para reestabelecer a ordem. Lembrem que Ditadura não é Tirania, esta última é a exploração do Estado por um príncipe apenas. No século XXI seguramente a grande maioria de nós tem grandes objeções a esta proposição de Maquiavel, apesar de alguns outros pensadores do passado terem também sugerido formas de governo mais ou menos autoritárias: para Platão, o governo deveria ser dos filósofos; Hegel, por sua vez, propunha o governo por um monarca hereditário. Também nós, na vida prática, aceitamos aqui e ali algum nível de restrição da liberdade para obter de graus maiores de segurança, quando nos sentimos ameaçados. A situação mais evidente é a que ocorre diante de uma ameaça terrorista, por exemplo, como foi o caso do ataque às torres gêmeas nos EUA e que resultou em significativo aumento no controle de nossa autonomia e liberdade como cidadãos, não apenas nos EUA. No plano das organizações, as questões aparentemente não são muito diferentes. Também nelas há degenerescência da liderança com o passar do tempo, o que obriga a substituições. Também nelas há períodos de dificuldades de mercado, financeiras, operacionais, ataques externos (cyber ataques, por exemplo) etc. e que exigem maior centralização de decisões para a retomada da ordem e da sustentabilidade.

2)      Maquiavel observou que os governos republicanos têm uma existência mais longa que os não republicanos. Por isso, especialmente no seu “Discorsis”, ele faz uma enfática defesa da democracia e da participação de todos. Para ele, o guardião da liberdade é o povo e o príncipe deve sempre se aliar a ele. Com exceção talvez dos grandes impérios oligárquicos do Oriente, esta percepção de maior perenidade dos governos republicanos pode ser facilmente observada também por qualquer um que se interesse por História, pelo menos dos últimos cinco séculos. No plano das organizações, a observação de Maquiavel deve ser interpretada de outra maneira. Em seus textos “Feitas para Durar” e “Feitas para o Sucesso”, Jim Collins nos mostra que a perenidade e o sucesso estão profundamente correlacionados com princípios participativos nas organizações, como o desenvolvimento de propósitos compartilhados, a transparência de informações e de oportunidades de desenvolvimento etc.

3)      A opinião de Maquiavel sobre as pessoas não era positiva. Para ele, as pessoas tendem à corrupção e o príncipe devia contar com isso nas suas decisões e ações. Nas elites, a tendência à corrupção as levava à ambição, enquanto que no povo levava à preguiça. Para lidar com essas tendências, que Maquiavel acreditava estarem sempre presentes, o príncipe deve conter a ambição das elites e aliar-se ao povo. A ambição da elite deveria ser cooptada e integrada, ou eliminada. Para tanto, até mesmo a crueldade e o uso de medidas amorais, se necessárias, era justificável, já que a ambição das elites sempre busca o poder. A aliança com o povo, por sua vez, era necessária porque entendia que este era o guardião da liberdade do Estado. Mas ele também previa que o próprio príncipe poderia ser atraído à corrupção, que se manifesta pela tirania. Neste caso, derrubar e substituir o príncipe era justificável.

4)      O bom governo se dá quando a virtude e a fortuna andam juntas e o príncipe deve contar com ambas. Para se aproveitar da fortuna o príncipe deve estar preparado, ter a virtude. Para demonstrar o que isto significa, vale recuperar um pequeno trecho do Capítulo XXV de “O Príncipe” e que me parece bastante apropriado para os dias de hoje:

“Não Ignoro que muitos têm tido e têm a opinião de que as coisas do mundo sejam governadas pela fortuna e por Deus, de forma que os homens, com sua prudência, não podem modificar nem evitar de forma alguma (...) Contudo, para que o nosso livre arbítrio não seja extinto, julgo poder ser verdade que a sorte seja o árbitro da metade das nossas ações, mas que ainda nos deixe governar a outra metade, ou quase. Comparo-a a um desses rios torrenciais que, quando se encolerizam, alagam planícies, destroem as árvores e os edifícios, carregam a terra de um lugar para outro; todos fogem diante dele, tudo cede ao seu ímpeto, sem poder opor-se em qualquer parte. E, se bem assim ocorra, isso não impedia que homens, quando a época era de calma, tomassem providências com anteparos e diques, de modo que, crescendo depois, ou as águas corressem por um canal, ou o seu ímpeto não fosse tão desenfreado nem tão danoso”. Quem, ao ler estas palavras, não se recorda imediatamente dos desastres climáticos que tão frequentemente nos alcançam. Líderes da ocasião, para fugir à sua própria responsabilidade, colocam a culpa sobre seus antecessores.

Provavelmente a grande maioria dos líderes que citam Maquiavel nunca leu um único de seus textos. Alguns talvez tenham lido “O Príncipe”. A maioria, no entanto, compra as interpretações sobre ele como ensinamentos para uma liderança “forte”, “corajosa”, “racional” e outros que tais. Como muitos outros pensadores de sua época ou um pouco depois, Maquiavel se preocupou muito com a coesão dos estados (organizações), numa época em que a liberdade começava a integrar as demandas dos indivíduos. Normalmente isso é resolvido por uma boa legislação, o que chamamos hoje de estado de direito. Nas organizações, é resolvido pelos seus estatutos sociais e normativos escritos ou consensados. Em seu tempo, parecia claro que eventualmente o líder precisava ir além. Mas isto só se justificava se fosse temporário. No mundo de hoje, mesmo nas organizações, quando a liderança se torna muito mais uma questão de influência, os espaços para ir além estão cada vez mais diminuídos. É necessária uma ameaça muito séria sobre a nossa própria existência para que concordemos com restrições à nossa liberdade. E assim devemos continuar.

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