A Confissão de Stavróguin – Uma Leitura desesperançada da Sociedade do Século XXI
- celsonhupfer
- 18 de out. de 2024
- 18 min de leitura
Como já mencionei em outros artigos, “Os Demônios” é uma das obras mais importantes da enorme produção literária do romancista russo Fiodor Dostoiévski. O capítulo “A Confissão de Stavróguin” é provavelmente um dos textos mais perturbadores de toda a literatura clássica do século XIX. A despeito dos horrores confessados pelo personagem e de sua atitude perversa, este texto me chamou a atenção desde a primeira vez que o li, há mais de 40 anos, e todas as vezes que o releio percebo elementos que ainda não havia me dado conta. Resolvi compartilhar minha relação com o texto de duas maneiras: primeiro, estimulado por um grupo de colegas, propus uma pequena dramatização para a confissão, utilizando-me em grande parte do texto do próprio Dostoiévski. Segundo, incomodado com o refluxo de um niilismo com vertente religiosa nos dias atuais, compartilho com vocês as minhas reflexões sobre a atualidade de seu tema. A ideia de um niilismo religioso parece em si contraditória, uma vez que o niilismo apresenta em sua essência a ausência de propósitos e, de outro lado, a ideia de religião está imbuída da noção de todo propósito, ainda que transcendental. A questão é que as religiões que vemos florescer neste século XXI são de uma certa religiosidade individualista, fundadas no que se tem chamado de teoria da prosperidade. Algo do tipo, “faça por você mesmo”, “o sucesso é fruto de teu esforço pessoal, não importa os meios”, e “o mérito é somente seu”, associado à fé num Deus que reconhece e premia o esforço individual. Um sucesso que, vale dizer, é sempre traduzido em termos materiais. Neste sentido, combina uma espécie de calvinismo (Ética Protestante), sem seu aspecto ascético, já que nesta reinterpretação a ostentação é celebrada, junto com elementos do niilismo tradicional, como individualismo, materialismo, amoralidade e sucesso a qualquer preço. Estas ideias estão fortemente presentes nos discursos de praticamente todos os autodenominados coaches e influenciadores sociais dos mais diversos espectros e tiveram uma de suas demonstrações mais barulhentas durante o primeiro turno do processo de eleição para Prefeito na maior cidade do Brasil, São Paulo, cujo expoente foi representado pelo influenciador Pablo Marçal. Mas não se resume a ele. Na política, este novo tipo de agente chegou ao segundo turno em outras capitais, como Curitiba, Goiânia e Belo Horizonte. Fora da política, casos como da influencer Deolane Bezerra estão na mesma esfera. Muita gente que não prestava atenção a este movimento, como era o meu próprio caso, viu-se, de repente, jogado para dentro de algo de muito difícil compreensão, basicamente porque trata-se de um discurso com enorme apelo na sociedade e que foi representado pela grande quantidade de votos recebida. Mas isso é assunto para um outro texto. Aqui me proponho apenas a compreender de que forma o niilismo traduzido em amoralidade e cinismo de Nikolai Stavróguin se espraia pela sociedade atual em suas mais diversas formas e não apenas neste particular evidenciado pela tal teologia da prosperidade.
1 – A confissão
Nikolai Stavróguin é um dos personagens centrais do romance “Os Demônios”, de Dostoiévski. O livro foi escrito entre 1870 e 1872, quando o autor estava em Dresden, fugindo de credores. Trata-se de um drama histórico-simbólico que tem como objetivo discutir as principais forças da cultura russa do século XIX, como os conflitos gerados pela importação de ingredientes culturais do Ocidente, as ideias incipientes de um socialismo não romântico, as consequências do fim da servidão, acontecido 10 anos antes, e o crescimento do niilismo entre os estudantes e a intelectualidade da época. O ambiente é verdadeiramente demoníaco, como prenuncia o título. Às vezes tem-se a impressão de se estar penetrando cada vez mais fundo no inferno de Dante e, ao final, sobra apenas uma sensação de desolação, morticínio, desespero e loucura.
Este capítulo não fez parte das primeiras edições de “Os Demônios”. Os editores e o próprio Dostoiévski o consideraram excessivamente perturbador para os padrões morais da sociedade da época. Ele chegou ao público somente depois de 1922, quando o governo russo tornou disponíveis os arquivos de Dostoiévski. A sua descoberta revelou que ele era de importância fundamental para a compreensão de todo o romance e, principalmente, da personalidade do personagem. O niilista Stavróguin, sentindo-se de vez em quando atormentado por uma ação sua de extrema crueldade, decide procurar o monge Thikon para lhe entregar uma confissão que havia escrito alguns anos antes. Procurou este monge em particular porque era reconhecido por sua santidade. O que ele confessa é o estupro de uma menina de 12 anos, Matriosha, a qual, não suportando a dor de ter se entregado ao seu algoz, suicida-se por enforcamento. Mas a perversão de Stavróguin ainda terá mais um ato extremado. Ele revela que conhecia as intenções da criança de cometer suicídio, mas preferiu não tentar impedi-la. Pelo contrário, teve prazer! O monge Thikon verifica que a confissão não revela qualquer tipo de sinceridade ou arrependimento genuíno. Aponta que ele só está interessado em sua absolvição por conta do que o próprio monge representa, com o que Stavróguin concorda, revelando ainda que teria prazer em ser reconhecido pelo restante da sociedade por sua perversão e capacidade de praticar o mal. Irritado por não obter a absolvição, retira-se de cena. Muitas páginas adiante, no final do romance, no ápice de sua falta de propósito e significado, Stavróguin também comete suicídio.
Quem já se familiarizou um pouco a obra de Dostoiévski conhece a sua crítica ao niilismo, um modo de existir caracterizado pela falta de propósitos e crenças, pelo individualismo e materialismo e pela ausência de moralidade. O romance “Os Demônios”, com seu tom muitas vezes panfletário, é talvez o ponto mais alto dessa crítica. São vários os personagens niilistas nesta obra, mas destacam-se Nikolai Stavróguin e seu seguidor Piotr Verkhoviênski. Eles são niilistas com características um pouco diferentes entre si. Verkhoviênski é um sujeito focado na ação e pratica ações desprezíveis, utilizando-se dos outros para inclusive cometer assassinatos. Já o niilismo de Stavróguin é caracterizado pela indiferença moral, a busca por experiências intensas e a afirmação de uma liberdade extremada, que inclui a possibilidade da destruição de outras pessoas. Por outro lado, Stavróguin, sente-se às vezes atormentado por ações do passado e deseja uma espécie de redenção, que não inclui arrependimento. Por isso, soa falso.
2 – Interpretações para o presente
Por entender que esta confissão continua muito atual, mesmo passados mais de 150 anos desde que foi escrito, acredito que o texto merece algumas reflexões. Como já mencionei mais acima, meu exercício sobre este texto resultou em dois trabalhos diferentes. De um lado, no presente artigo tento elaborar algumas conexões que me parecem importantes para compreender a cultura deste começo de século XXI. De outro, há algum tempo fui provocado por uma grande amiga, Débora Mello, do Instituto Bioatrium, a produzir um texto para representação baseado nessa confissão. Para essa produção recebi a colaboração fundamental de outras colegas do mesmo instituto, Paula Moro e Natália Giro. Junto com este meu artigo de agora, distribuo também o texto para dramatização. Peço aos experts que perdoem a minha falta de traquejo com o estilo, mas acredito que a divulgação conjunta ajuda a compreender melhor o que Dostoiévski quer nos transmitir. Para a dramatização, criei um personagem que não existe no texto original. Este personagem representa uma improvável consciência de Stavróguin. Pode parecer um tanto controverso, já que ele muitas vezes me parece não ter uma consciência, pelo menos no sentido moral, mas acredito que esta licença poética contribua para entrar em contato com os conflitos existenciais do personagem principal.
O que faz um texto tão perturbador e escrito há mais de 150 anos soar tão contemporâneo? Para compreender isso, é necessário trazer à tona algumas das principais questões que Dostoievski propõe.
Como assinalado mais acima, Stavróguin é um niilista, que revela uma vida vazia de significado e, para Dostoiévski, caracteriza um certo grupo de indivíduos que havia se estabelecido na cultura de seu tempo. Ele se movimenta na ausência de crença em qualquer valor moral ou religioso, o que o leva a ações extremadas e desumanas, como a revelada na confissão. Rejeita todas as normas e convenções sociais e vive de acordo com suas próprias vontades, acreditando numa liberdade absoluta. O resultado é o vazio existencial. Sua procura por absolvição não vem acompanhada de arrependimento e, por isso, não alcança a redenção. O seu suicídio no final do livro representaria para muitos críticos, o ápice de seu niilismo e da falta de sentido de vida.
Em resumo, portanto, suas principais características são a amoralidade, a ausência de propósitos, a desumanidade, a banalização do mal, a vontade e liberdade absolutas, a rejeição às normas e convenções sociais, a falta de sinceridade e de arrependimento verdadeiro e, finalmente, a ausência de sentido e o vazio existencial. Talvez eu esteja sendo excessivamente cético, mas minha leitura do que acontece no Brasil e no mundo neste começo de século XXI, indica que estamos vivendo um momento de exacerbação destes sintomas. Não consigo nomear a doença que vivemos, mas temo que ela não nos levará a bom termo, assim como se verificou nos anos que se seguiram ao texto de Dostoiévski na Rússia e na Europa.
A Ausência de propósitos e a perda de sentido
Para o crítico Mikhail Bakhtin, em seu livro “Problemas da Poética de Dostoiévski”, Stavróguin rejeita todas as normas e convenções sociais e espirituais, vivendo de acordo com suas próprias vontades, sem esperança de redenção. O resultado é o vazio existencial e a perda de sentido da vida.
Vivemos uma época de exaustão das principais ideias que acompanharam todo o projeto moderno, desde pelo menos o século XVI, como o capitalismo, a centralidade da ciência e da técnica e o utilitarismo. O capitalismo tornou-se hegemônico, mesmo quando não está acompanhado de sua tônica liberal. Junto com ele, observamos o aprofundamento do individualismo e do materialismo, dois dos elementos principais da crítica de Dostoiévski em “Os Demônios”. Experienciamos uma sociedade caracterizada pelo consumismo, o sucesso material a qualquer custo e a superficialidade dos relacionamentos através das mídias sociais. Tornamo-nos presas fáceis para os algoritmos das plataformas digitais, como Facebook e Google, que preveem o que podemos querer no próximo minuto. Seguimos freneticamente influenciadores e coaches digitais que nos prometem o sucesso imediato, medido em quantidades de cliques e riqueza material. Discursos extremistas encontram eco no nosso sentimento de ressentimento decorrente do nosso isolamento e injustiça por não alcançarmos o sucesso desejado. Somos atraídos para o caminho fácil do jogo e das apostas, na esperança de que o nosso investimento resulte em atalhos para percursos normalmente extenuantes. Como consequência, caminhamos cada vez mais na direção do isolamento, da ausência de autonomia e autenticidade, da alienação e da perda de sentido de vida.
As alternativas que Dostoiévski propunha há mais de 150 anos, como a recuperação de uma religiosidade perdida, me parecem tão complexas e idealizadas quanto as que são sugeridas por alguns pensadores de hoje, como a espiritualidade, a filosofia, o envolvimento nas causas sociais e ambientais ou um estilo de vida mais simples. O problema é que essas opções, embora reais e presentes, são sempre ofuscadas pela velocidade e intensidade da cultura contemporânea de consumo e sucesso rápido e pelas demandas das mídias sociais que estão presentes em todos os aspectos de nossas vidas.
Para quem desejar se aprofundar nessas questões, recomendo ler autores como Zygmunt Bauman e Byung-Chul Han. O primeiro trata do que ele denomina de modernidade líquida e das relações humanas frágeis e transitórias. Muitos desses conceitos foram pensados antes da explosão das plataformas de relacionamento, nas quais a superficialidade das relações se exacerbou. O pensamento do alemão coreano Byung-Chul Han mostra como o capitalismo empurra as pessoas para uma busca constante de performance e produtividade, criando uma cultura de exaustão e burnout, em que o propósito parece se esgotar em métricas materiais. A isso ele dá o nome de sociedade do cansaço.
Amoralidade: Os fins justificam os meios
Stavróguin é um sujeito que não é regido por qualquer princípio moral. Somente sua vontade de prazer tem valor. Abusar de uma criança e observar o desespero que a leva ao suicídio são motivo de prazer para ele. Da mesma forma, ficaria feliz em ser reconhecido por sua capacidade de praticar o mal extremo.
A ideia de que os fins justificam os meios frequentemente é associada ao pensamento do filósofo florentino Maquiavel, que em seu livro “O Príncipe”, sugeriu a governantes e líderes que, para manter a coesão do Estado, é mais importante ser temido do que ser amado e que a mentira e a crueldade devem ser utilizadas pelo príncipe para assegurar a paz social. Ele buscava demonstrar exclusivamente que a vida política deveria ser regida por uma moralidade diferente daquela exercida pelas pessoas na vida privada. Com frequência, no entanto, estas ideias são extrapoladas para normalizar qualquer comportamento nas nossas sociedades ultraliberais, em que são exacerbados o interesse individual e o sucesso a qualquer preço.
Os dias de hoje estão povoados de novos termos para dar conta da noção de amoralidade: pós-verdade, fake News, deep fake, discursos de ódio etc. O termo pós-verdade se popularizou nos últimos anos, especialmente nos contextos políticos e sociais, em que as emoções e as narrativas ideológicas parecem superar os dados verificáveis. Sua origem remonta ao ano de 2016, quando o Oxford Dictionaries elegeu o termo como a palavra do ano, associando-o a eventos como a eleição de Donald Trump nos Estados Unidos e o referendo do Brexit no Reino Unido e as campanhas conduzidas pela Cambridge Analytica e a manipulação de dados para fins políticos. Trata-se de uma ideia que quer afirmar que a verdade é aquilo em que você acredita ser verdade e os fatos e realidade devem estar a serviço desta crença. Desta forma, as emoções, como medo, raiva ou esperança, têm mais peso do que informações objetivas e factuais. Assim, uma notícia falsa que provoque reação emocional vale para os propósitos de quem a produz ou divulga, mesmo que seja desmentida posteriormente. Da mesma forma, a verdade deve ser relativizada, já que trata-se de uma ideia subjetiva. Você acredita naquilo que acredita querer, uma vez que o fenômeno dos filtros de bolha apenas reforça opiniões pré-existentes. A disseminação deliberada de informações falsas (fake News) é utilizada para moldar narrativas e manipular a opinião pública, criando realidades paralelas. Seu propósito é a polarização política, em que posições ideológicas são levadas a extremos. Estes fenômenos sempre fizeram parte da vida social, desde a época em que curandeiras, videntes e mulheres carismáticas eram queimadas ou apedrejadas. O que os torna especiais hoje é a disponibilidade da tecnologia, especialmente do deep fake e dos algoritmos de comportamento, que possibilitam a rápida difusão das informações, a personalização de conteúdos e a afirmação de crenças sem a crítica do contraditório.
Mas a crise moral vai muito além destes aspectos da sociedade contemporânea. Ela não precisa da tecnologia para se mostrar e pode ser encontrada em inúmeros outros fenômenos, como:
- Corrupção política e de funcionários públicos. Valores de bem comum, justiça e transparência são subvertidos por interesses pessoais ou partidários. Exemplos no Brasil são os escândalos do “mensalão”, da “lava jato” e “rachadinhas”.
- Exploração extrema de trabalhadores no mundo corporativo, através de práticas como condições de trabalho análogo à escravidão, a terceirização do trabalho braçal de marcas para países pobres, o assédio moral praticado por chefes etc.
- Exploração da fragilidade humana pela indústria farmacêutica, como nos casos do escândalo dos opioides nos Estados Unidos ou a utilização de cobaias humanas para o desenvolvimento de medicamentos.
- Aumento crescente da desigualdade econômica e da injustiça social, alcançada por elites políticas e corporações que fogem da tributação para paraísos, em nome de planejamentos tributários.
- Mudança climática e negligência ambiental, manifestada na resposta insuficiente de governos e empresas diante da crise climática, apesar do consenso científico sobre seus impactos. Inclui-se aqui a negação de seus efeitos e o aproveitar-se da distração da sociedade “para passar a boiada”. Neste caso, a amoralidade refere-se à falta de ética em relação a gerações futuras.
- Criminalização de populações vulneráveis, como os sem-teto ou trabalhadores informais, frequentemente banalizados como bandidos em função de sua condição econômica.
- Justificação da guerra e do extermínio do outro por ser diferente, como são os casos recentes das guerras entre Israel e Hamas ou Rússia e Ucrânia.
E assim por diante.
A liberdade individual acima de qualquer coisa
Outra característica do comportamento de Stavróguin é a de sua busca pela liberdade extremada, a noção de que sua condição lhe dá o direito de fazer o que quiser, mesmo que isto prejudique outras pessoas. No seu caso, a liberdade não é a de praticar qualquer ato para um fim político, como é o caso de outro personagem de “Os Demônios”, Piotr Verkhoviênski. Ele pode tudo simplesmente porque quer!
A defesa da liberdade acima de qualquer coisa tornou-se um fenômeno dominante na cultura contemporânea e está enraizada numa espécie de individualismo radical, numa meritocracia exagerada e na ideia de que o mais forte pode tudo. Esta nova concepção de liberdade individual difere significativamente da noção clássica do liberalismo de John Locke e John Stuart Mill, em que ela vinha inserida num contexto de responsabilidade social e de limites éticos. A visão distorcida atual é uma forma de ultra-individualismo, onde a liberdade torna-se um direito absoluto, desprovido de qualquer responsabilidade social ou ética. Ela pode ser observada de duas maneiras principais: a da ausência de limites, segundo a qual as pessoas sentem-se no direito de fazer o que quiserem, independente do impacto sobre os outros ou sobre o bem comum; e a ideia de que o vencedor leva tudo, uma espécie de meritocracia levada ao extremo, em que os indivíduos devem competir livremente, com o pressuposto de que o mais forte ou mais talentoso tem o direito de “levar tudo”. Neste caso, trata-se de um darwinismo social, em que o sucesso é justificado pela superioridade competitiva e os menos afortunados ou menos capazes são responsabilizados por seu fracasso, sem considerar as condições de partida e de desenvolvimento de cada um. Alguns exemplos nos ajudarão a compreender melhor a presença desta noção distorcida da liberdade na sociedade contemporânea e que representa uma amoralidade, uma vez que desconsidera a ética o bem comum.
- Cultura do self-made man e do empreendedorismo. Especialmente nas redes sociais e na mídia há uma glorificação do comportamento empreendedor – aquele sujeito que, supostamente, construiu seu sucesso sem a ajuda de ninguém, apenas pelo seu esforço pessoal, não considerando fatores externos, como privilégio, circunstâncias econômicas e redes de apoio. A mensagem é que o indivíduo pode alcançar tudo por conta própria e quem falha o faz por fraqueza moral e pessoal e falta de esforço. Esta cultura está presente até mesmo em atividades caracterizadas pelo trabalho precário, como de motoristas de aplicativos e de entregadores, os quais não alcançam o sucesso porque não se dedicam o suficiente.
- Liberdade de expressão sem responsabilidades. Embora a liberdade de expressão seja um pilar fundamental das sociedades democráticas, ela é frequentemente usada como justificativa para discursos de ódio, disseminação de fake News e comportamentos irresponsáveis nas plataformas digitais. Em nome dela, as pessoas acreditam que podem dizer o que quiserem, sem consequências, mesmo que cause danos à coletividade ou alimente preconceitos e desinformação.
- Desregulação econômica e liberdade corporativa. No campo econômico, essa distorção da liberdade se manifesta na promoção da desregulação extrema, como o direito de operar com o mínimo de interferência governamental, mesmo que isso signifique prejudicar o meio ambiente, explorar trabalhadores ou evitar pagar impostos.
- Movimentos antivacina e negacionismo científico. Especialmente durante a pandemia de Covid-19, o movimento antivacina representa uma concepção extrema de liberdade individual. Trata-se da ideia de que cada pessoa tem o direito absoluto de decidir sobre seu corpo, sem considerar as consequências para a saúde pública. A recusa em tomar vacinas não afeta apenas o indivíduo, mas também a comunidade, já que a imunização depende da adesão coletiva. A liberdade é entendida como um direito inalienável de fazer escolhas pessoais, mesmo quando essas escolhas ameaçam o bem comum, gerando crise moral no campo da saúde pública.
- Liberdade e consumo ostentatório. A liberdade de comprar e exibir riqueza é interpretada como símbolo de sucesso pessoal, sem reflexão sobre as consequências ambientais, sociais ou éticas de um estilo de vida baseado no consumismo. O consumo pode e deve ser exercido em detrimento da sociedade e da igualdade social.
Como consequência da exacerbação do conceito de liberdade o que se observa é o crescimento da desigualdade social e econômica, a desintegração do senso de comunidade e a erosão das normas éticas.
A banalização do mal e desumanização
A ideia de banalidade do mal foi expressa pela filósofa Hannah Arendt, depois de assistir e refletir sobre o julgamento de Adolf Eichmann, que havia sido gestor da logística de deportações em massa de judeus para os campos de extermínio da Alemanha durante a segunda guerra mundial. A ideia é a de que a maldade não é necessariamente produto de figuras monstruosas e demoníacas, mas que pode surgir de pessoas comuns que cumprem ordens ou adotam ideologias sem reflexão crítica. Para quem tiver interesse em compreender este fenômeno, recomendo assistir “O Julgamento de Eichmann” e “Os Experimentos de Milgram”, dois filmes que podem facilmente ser encontrados na internet. O primeiro permite como que tangibilizar a ideia de Arendt. O Segundo relata os experimentos conduzidos pelo psicólogo social Stanley Millgram, na década de 1960, acerca da obediência à autoridade e seus impactos sobre a capacidade humana de praticar o mal, quando este pode ser justificado.
Apesar de termos nos afastado um tanto da barbárie das grandes guerras e das revoluções do século XX, a banalidade do mal continua presente nos diversos conflitos ao redor do mundo e nas nossas vidas cotidianas. Importante notar que falamos de banalidade do mal quando nós já não mais nos indignamos com ele, quando o justificamos por qualquer razão política ou ideológica ou simplesmente quando nos acostumamos a ele e o tornamos normal. Alguns exemplos nos ajudam a compreender:
- Ataques do grupo terrorista Hamas a cidadãos comuns israelenses, matando mais de 1200 pessoas e sequestrando mais de 200, justificados como reação à condição imposta pelo Estado de Israel ao povo palestino;
- A resposta desproporcional de Israel aos habitantes da Faixa de Gaza, matando mais de 40 mil pessoas, justificada pelos ataques do Hamas;
- A ideia de que danos colaterais são aceitáveis quando o objetivo é eliminar um terrorista. Recente material publicado pela Utrecht University acerca dos desafios morais e legais impostos pelo uso de sistemas de apoio à decisão baseados em IA no campo de batalha, demonstra como as forças de defesa de Israel utilizaram sistemas de Inteligência Artificial para eliminar membros do Hamas e classificavam os danos colaterais aceitáveis de acordo com o status do indivíduo alvo na hierarquia de comando do grupo terrorista. Assim, se o membro é apenas um simpatizante, aceita-se que outros 30 a 40 pessoas sejam igualmente assassinadas, número que pode alcançar os 300 ou 400 caso o membro esteja em posição elevada na hierarquia. Ou seja, para matar um líder do Hamas, é aceitável que se assassine um bairro inteiro, não importa quem lá estiver.
- Violência contra vulneráveis de qualquer tipo, como crianças, mulheres, migrantes, comunidades LGBTQ+, negros, trabalhadores em condições sub-humanas, populações carcerárias etc. O Brasil verificou em 2023 mais de 75 mil estupros, sendo mais de 65% contra menores de 14 anos;
- Exploração das comunidades periféricas por milícias e narcotraficantes nas grandes cidades brasileiras e sua normalização;
- A nossa passividade em tolerar ações das polícias militares nas comunidades carentes de São Paulo e Rio de janeiro, em nome de perseguir traficantes e bandidos, como se toda a população destes locais “merece” morrer;
- Ataques de grupos de extrema direita à honra de repórteres e jornalistas que revelaram esquemas de manipulação de informações, disseminação de Fake News etc.
- Ataques à honra de pessoas que já morreram, mas que pensavam de forma diferente, como o caso de Marielle Franco;
- Exaltação da tortura em nome do combate ao terrorismo ou a ideologias comunistas, como o caso do ex-presidente Jair Bolsonaro em relação à conduta de Brilhante Ustra;
- Minimização de esforços e desprezo ao sofrimento de pessoas durante a pandemia de Covid-19;
- Discursos de ódio e perseguição de personalidades ou comunidades nas redes sociais;
- Disseminação de Fake News destinadas a cancelar ou atacar a integralidade física e moral de pessoas em função de sua posição política, sua condição social, de raça ou cultural. É banalização quando consideramos isso normal, aceitável;
- Normalização da corrupção nas mais diversas escalas de governos, em que se destacam escândalos como os da Lavajato, Mensalão e Rachadinhas;
- Descaso e incentivo à destruição do meio ambiente, como os casos do ex-ministro Ricardo Salles ou os incêndios criminosos de 2024;
Cinismo e falta de arrependimento
O monge Thikon percebeu que Stavróguin agia com cinismo e não demonstrava arrependimento sincero. Ele queria ser reconhecido por sua capacidade de praticar a maldade e uma eventual absolvição só fazia sentido para ele se oferecida pela figura de santidade que Thikon representava.
Para compreender esta ideia de cinismo que foi brilhantemente desenvolvida por Peter Sloterdijk, no livro “Crítica da Razão Cínica”, vou recorrer a algumas variantes de uma frase que é conhecida por muitos de nós, porque teria sido proferida por Jesus Cristo enquanto agonizava na cruz e está no Evangelho de Lucas (23:34): “Perdoa-os porque não sabem o que fazem”. Ela representa uma ignorância inocente acerca do mal que estava sendo praticado, a crucificação, e, por isso, Cristo pede que Deus Pai perdoe as pessoas que o condenaram e que o crucificaram, por que desconhecem a sua mensagem e a sua condição de Filho de Deus.
Uma primeira variante nos foi oferecida inicialmente por Karl Marx em seu “O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte”, escrito em 1852, onde ele faz uma análise crítica dos acontecimentos políticos da França após a Revolução de 1848: “Perdoa-os porque sabem o que fazem”. Marx usa essa frase para criticar a consciência política e histórica das classes dominantes e a repetição cínica de padrões de poder. Ela reflete um ponto de vista materialista onde os indivíduos ou grupos que detêm o poder, mesmo sabendo do mal que estão fazendo, continuam a agir em benefício próprio ou de sua classe.
A atualização da frase de Marx para um contexto de banalização do mal, como o que vemos hoje, onde atos de injustiça, violência e opressão são rotineiros e normalizados, nos sugere a segunda variante: “Perdoa-os, porque sabem o que fazem e já não se importam”, que não possui um autor identificado, mas que é comumente utilizada para refletir o cinismo da sociedade contemporânea. Aqui, além da transgressão deliberada e consciente, ressalta-se a aceitação passiva e indiferente da violência, apesar da plena consciência de suas consequências. O conhecimento do mal vem acompanhado de ausência de qualquer reação moral ou emocional diante dele. Não se trata mais da mera hipocrisia e cinismo a que se refere Marx, mas da apatia e insensibilidade que todos nós, como sociedade, desenvolvemos quando comportamentos destrutivos ou imorais se tornam rotineiros. O mal é trivializado, seja por meio das redes sociais, da mídia ou da política. Pior, o mal é justificado em nome de conveniências econômicas, ideológicas e culturais.
3 – Conclusão
A Confissão de Stavróguin é um dos textos mais perturbadores de toda a obra de Dostoiévski. Ela é comparável a outros momentos de sua extensa produção literária, como “O Homem do Subsolo” e sua descrição do ressentimento, “O Grande Inquisidor” de “Os Irmãos Karamázov”, com sua espécie de dúvida radical e “O Sonho de um Homem Ridículo”, único momento em que a maldade alcança a redenção na literatura de Dostoiévski. Stavróguin representa a maldade absoluta, com tudo que a acompanha, o cinismo, a ausência de valores morais, a ausência de significados e propósitos, a liberdade extremada e a banalização do mal. Quando Dostoiévski escreveu este romance ele estava interessado em se posicionar contra a infiltração de valores ocidentais na cultura russa de seu tempo, marcados pelo individualismo, cientificismo, racionalismo, materialismo e niilismo. Um de seus principais desafetos na época era outro escritor de seu tempo, Nikolai Tchernychevskii, que havia escrito alguns anos antes o livro “O Que Fazer?”, texto que inspirou posteriormente a obra homônima de Lênin, artífice e condutor da revolução russa. Apesar de neste texto, Dostoiévski estar preocupado especialmente com o incipiente socialismo materialista que ocupava as mentes da intelectualidade russa, ele também voltava sua verve contra a exaltação do cientificismo e tecnicismo representado pelo capitalismo do Ocidente.
As ideias centrais desta confissão me parecem estar exacerbadas na cultura contemporânea de proliferação de fake News, superficialidade das mídias sociais, crueldade e assassinatos justificados por ideologias e extremismos políticos, destruição sistemática de identidades, lacração de perfis, utilização de algoritmos para a manipulação de corações e mentes com finalidades políticas e econômicas. Por isso, acredito na atualidade do texto. Acompanha também uma proposta de dramatização da confissão.
Excelente reflexão, recorrendo ao que estamos vivenciando hoje.
obrigada por partilhar tão rica refkexao